Núcleo interdisciplinar de pesquisas teatrais da Unicamp

| BIOGRAFIA |

Os movimentos de um realizador de sonhos

“Às vezes a luz pode estar em um detalhe que de tão pequeno nos escapa desapercebido. Qualquer feixe de luz deve ser seguido, e se for falso, ilusão, voltamos ao ponto de partida. E isto deve ser feito repetidas vezes, até se encontrar algo significante, um lume que guie.

Luís Otávio Burnier

Luís Otávio Burnier deixou impressões profundas não somente na história do teatro brasileiro mas nas pessoas que conviveram e trabalharam com ele. Lembrado pela enorme contribuição à arte de ator – com a criação e o desenvolvimento de técnicas de representação –, Burnier continua sendo assunto em rodas de amigos, parentes e admiradores que contam histórias pontuadas por humor e ousadia.

Nascido Luís Otávio Sartori Burnier Pessoa de Mello, na véspera do Natal de 1956, em Campinas (SP), Burnier é o segundo filho de um total de quatro, todos homens. Seus pais se chamam Thaís Maria e Rogério Drummond.

Queria ser padre quando criança. “Rezava” missa em casa, com direito a hóstia não-consagrada. As toalhas da mãe viravam toalhas para o altar e os "fiéis" eram seus pais e irmãos. Adolescente, estudou mímica por conta própria, assistindo aos vídeos do pantomimo francês Marcel Marceau, e fez parte da primeira turma do Curso Livre de Teatro, criado pela diretora Teresa Aguiar no Conservatório Carlos Gomes.

O primeiro espetáculo em que atuou foi “O Calvário do Zé da Esquina”, marcado pela crítica ao autoritarismo e apresentado em praças e ruas da cidade. Em 1973, foi estudar na Fitzgerald High School, na cidade de Warren, em Michigan, onde apresentou um número de mímica para várias classes da escola e recebeu o diploma de Mime Lecture no final do curso.

De volta ao Brasil no ano seguinte, retomou os estudos com Teresa Aguiar e montou o primeiro solo de mímica, o espetáculo “Burna”, apresentado no 1º Festival dos Cursos de Teatro de Campinas, sendo ovacionado pela plateia do antigo teatro do Sesc – onde estava o mímico brasileiro Ricardo Bandeira, a quem Marcel Marceau chamou de “seu sucessor brasileiro”.

Paris

Em 1975, Burnier passou em primeiro lugar no vestibular da Escola de Arte Dramática (EAD) da Escola de Comunicações e Artes (ECA), na Universidade de São Paulo (USP). Como prêmio, ganhou uma bolsa de estudos para o Mime Mouvement Théâtre, de Jacques Lecoq, na França.

Aos 18 anos, embarcou para Paris ansioso para conhecer Marcel Marceau. Na capital francesa, foi convencido pelo mímico Jean-Louis Barrault a procurar Etienne Decroux (foto acima) – mestre tanto de Barrault quanto de Marceau –, que estava então com 75 anos de idade.

Admitido na escola de Decroux e no curso de teatro da Université de la Sorbonne Nouvelle – Paris III (por onde se tornaria bacharel e mestre), Burnier passou oito anos na França, tempo em que se dedicou aos estudos e intercâmbio com mestres do teatro Ocidental e Oriental.

Entre 1981 e 1983, desenvolveu uma pesquisa que seria o embrião do que ele chamaria de Mimesis Corpórea – técnica até hoje trabalhada pelo LUME. Disposto a montar um conto de Juan Rulfo, Burnier percorreu as ruas, favelas e hospitais infantis do Rio de Janeiro e de Quito, no Equador, e criou o solo “Macário”, que foi apresentado no Brasil, Argentina, Peru e França.

De volta ao Brasil, foi admitido como professor no Departamento de Artes Cênicas do Intituto de Artes (IA) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e passou a trabalhar paralelamente como diretor de atores e espetáculos, e a ministrar workshops no País e no Exterior.

Fundação do LUME

Durante um curso intensivo que foi ministrar na Escola de Artes de Laranjeiras, no Rio de Janeiro, Burnier conheceu Carlos Simioni, um jovem ator premiado em Curitiba, que se mudou para Campinas a fim de participar da fundação do LUME.

Em um salão paroquial da Vila Santa Isabel, os dois deram início aos treinamentos desenvolvidos e transmitidos até hoje pelo LUME, como a Dança Pessoal e o Treinamentos Energético e Técnico do Ator.

Em 1985, junto de Simioni e da musicista Denise Garcia, Burnier funda oficialmente o LUME, que inicialmente designava Laboratório Unicamp de Movimento e Expressão. O primeiro resultado da pesquisa da Dança Pessoal é o espetáculo “Kelbilim – o Cão da Divindade” (foto acima), solo de Simioni, com direção de Burnier e direção musical de Denise Garcia. Três anos depois, também passa a fazer parte do LUME o ator Ricardo Puccetti.

Burnier, Simioni e Puccetti traduziram para o português os livros “A Arte Secreta do Ator” e "Além das Ilhas Flutuantes", ambos de Eugenio Barba, lançados pela Editora HUCITEC/UNICAMP.

Em 1990 e 1991, Burnier se envolve na realização das duas únicas edições do Festival Internacional de Teatro de Campinas (FIT), que reuniu espetáculos, pesquisas, ensino e trouxe mestres internacionais para Campinas, como Natsu Nakajuma (discípula de Tatsumi Hijikata e Kazuo Ohno).

Família LUME

Em 1993, após seis meses de treinamentos diários com o LUME, uma turma de 11 formandos em Artes Cênicas na UNICAMP viaja para várias partes do Brasil a fim de realizar pesquisas para um espetáculo: Ana Cristina Colla, Ana Elvira Wuo, Andréa Ghilardi, Fábio Leirias, Fátima Cristina Moniz, Gabriel Braga Nunes, Jesser de Souza, Katherine Nakad Chuffi, Marli Marques, Raquel Scotti Hirson e Renato Ferracini.

Em novembro de 1993, os formandos montam “Taucoauaa Panhé Mondo Pé”, dentro da técnica da Mímesis Corpórea, com histórias e matrizes corporais de moradores da Amazônia, Tocantins, Minas Gerais e São Paulo.

A experiência deixou marcas profundas nos atores e, em 1995, alguns deles decidem fazer parte definitivamente do LUME: Ana Cristina Colla, Jesser de Souza, Raquel Scotti Hirson e Renato Ferracini – as atrizes Ana Elvira Wuo e Luciene Domeniconi ficaram até 1997.

Em 1994, Burnier defendeu a tese de doutorado “A Arte de Ator – da Técnica à Representação”, pela Faculdade de Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC). A tese reuniu experiências e reflexões desenvolvidas nos primeiros 10 anos do LUME e foi publicada em livro em 2001 (com reedição em 2009), tornando-se referência entre atores e estudantes de teatro, edança.

De súbito...

Em 13 de fevereiro de 1995, Burnier morre aos 38 anos de idade, de infecção generalizada. Seu pai escreveu: “Luís Otávio tinha completado o seu ciclo! A vida nossa não é senão o lapso de tempo que nos é dado para depositarmos o nosso dom. O meu Luís o fez, e com que desprendimento e generosidade, na alegria e na singeleza”.

Carlota Cafiero